segunda-feira, 10 de maio de 2010

"E os Subs Descobriram o volume...”

Antes a gente infernizava a vida deles. Eles trabalhavam e nós, os filhos, costumávamos ficar um pouco à vontade para algum barulho. Na época, as bandas de sucesso eram Titãs, Paralamas do Sucesso, Plebe Rude... nossas mães às vezes compreendiam o porquê de tanta aparente rebeldia. Culpavam as músicas, assim como as culpamos muitas vezes de ter uma vida sofrida dos personagens de novela.

Mesmo assim, um ou outro guri aumentava bastante o volume do som do quarto. Qualquer um pode imaginar o ódio visceral que se tem de ruídos quando se trabalhou a noite inteira. Mal começavam as músicas, algum dos poderosos “primeirões” clicava o interfone do imóvel funcional. Mãe atende, bate boca com a vizinha sobre sua liberdade e fechava a porta. Mas sentenciava:

- Nada de aumentar o volume. Ponha os fones de ouvido.

Enfim, o “Sub” mandava em tudo. Inclusive no seu quarto. Da mesma forma que meus amigos respeitavam meu pai, a recíproca evidente era que sempre respeitei os deles. Não exatamente pela representação impositiva de seus uniformes, mas principalmente por serem os pais mais “fodas” dentre os pais dos coleguinhas, principalmente nas reuniões escolares. Não havia curiosidades sobre a profissão do padeiro. Todos sabem o que o padeiro faz: pão!

O que diacho esses caras cheios de penduricalhos no uniforme faziam? Por que quando começavam a falar o cidadão comum fechava a boca e ouvia com atenção?

Apurávamos antenas. Não era incomum que enquanto os pais tomavam sua cerveja e conversavam confortavelmente no clube militar acompanhássemos como quem não quer nada os causos e situações que cada um expunha. Desde pequenos, percebíamos que entre uma cerveja e outra sequer reparavam os grandes feitos que realizavam.
Outros coleguinhas mantinham-se entretidos com toda sorte de atividades. Uns gostavam de vôlei, outros ignoravam o sol escaldante do Distrito Federal e empreendiam um ou outro lance de basquete. Grande parte dos outros guris ia à piscina, revezava-se no “totó”. Pebolim era característica do clube, tão parte desse cenário quanto a batata frita.

Homens como meu pai trabalhavam com telegrafia - e em decorrência disso não gostavam de música em alto volume. A característica do cidadão brasiliense que mora em apartamentos era, na década de 80 e 90, a discrição sonora. Hoje é compreensível o porquê dessa característica: havia algo inteligente na atitude de cada um em relação à música. Presumia-se que a liberdade que concedíamos a nós mesmos era extensiva aos outros.

Havia também homens que trabalhavam com música. Um instrumento por homem em uma banda, e o conjunto de seu trabalho gera a música - mesmo no quartel. O problema é que nem sempre se toca a música que se quer, e a música sai "sem emoção". Músico militar dificilmente toca hard-rock ou qualquer coisa acelerada, são bons em tocar blues. Mas tinham consideração pelos telegrafistas, e sequer tocavam seus instrumentos dentro de casa. Não havia sequer ânimo para isso. Músico também gosta de sossego.

Ou seja: se eu me autorizasse a ouvir “Clitóris” de Titãs em volume exagerado, concedia automaticamente aos religiosos o direito de ouvir em igual amplitude suas músicas. Iniciava-se deste modo uma disputa sonora que costumava resultar numa franca disputa de equipamentos potentes. O toma lá, dá cá durava algumas músicas.
Breve alguém clicava o interfone.

Quando houvesse a possibilidade de desavença por motivo tão pouco fundamentável, os antigos acionavam o “poder moderador”, representado no prédio onde tornei-me adolescente e adulto pela figura do zelador. “Seu João” era respeitado pelo mesmo motivo que nossos pais. Era pai de um de nossos amigos. Ninguém tinha interesse em causar desagravos com Maninho. Maninho, como o nome já supunha, era “brother” de todo mundo. Quando Seu João manifestava-se intervindo na situação o volume era reduzido e passávamos meses ouvindo música discretamente, com o fone de ouvido que dispuséssemos.

O problema do fone de ouvido é que ele não reproduzia todos os detalhes das músicas. A falta de qualidade dos fones não permitia ouvir os tons mais graves e eram demasiado frágeis. Em pouco tempo era comum que deixassem de funcionar corretamente. Quando pifavam, muitos abandonavam a idéia de ouvir música. Casas tornavam-se silenciosas.

A diferença de gostos musicais na própria família era gritante. Os pais gostavam dos hits da década de 70, normalmente contida em discos de vinil. Associavam a idéia de ouvir música às próprias personalidades de seus cantores e pode-se dizer que foi uma época pródiga na produção de música. Nomes comes como Abba, Rolling Stones, Amelinha, 14 bis são comuns em vinis dos que gostavam de música na vida urbana de Brasília. Seus filhos migravam aos poucos de Michael Jackson e Legião Urbana para Dire Straits e Ultraje a Rigor. Assim era o ambiente sonoro médio de uma família urbana.

Havia também bandas locais. Essas faziam a felicidade do candango do plano piloto porque produziam música com a cara do que assistíamos. Os afortunados filhos de militares, políticos e empresários difundiam as músicas mais interessantes de seus amigos.

Bandas como Zamaster, Capitães do Cerrado e uma série de outras referências quase desconhecidas alimentavam o arsenal de música dos adolescente, em cada Walkman. Os Walkman eram uma espécie de Mp3. Gravavam música em fitas que eram disputadas e divulgadas entre amigos.

A adolescência fluiu alimentada de músicas. Mantínhamos a reserva de não incomodar nossos pais com as que mais interessavam: o rock manifesto. Era um tipo muito próprio de música que tinha por objetivo expressar o mesmo de qualquer cronista: o cotidiano. Só que com muito mais atitude. É o que me lembro.
...
Acordei numa segunda feira. Rotina. A rotina da escala de serviço é não ter rotina. Na tarde anterior, o sub lá de casa decidiu ouvir suas músicas no carro. No meu carro. Se na década de 80 o que o automóvel possuía era um modesto rádio AM/FM e dois alto-falantes Arlen, hoje sensores de laser decodificam dados e geram som em volume muito mais elevado.

- Cadê a chave da Saveiro?

Acabou o silêncio de domingo. O primeiro sub telegrafista descobriu o botão de volume - E viu que era bom. Se antes estava condicionado a reduzir o volume de seus fones para poupar sua audição da exposição excessiva à telegrafia, descobriu também que aumentando o som percebe detalhes que antes passavam despercebidos pelo baixo volume ao qual estavam acostumados. Não sei o que deu na cabeça dele de ouvir samba. Não era costume.
À noite, rendição. Outro sub telegrafista próximo expressa também sua expressão. Música evangélica. Não chegou a incomodar, mas compartilha o pensamento da paz de domingo, da elevação à melhor das finalidades da música: louvar a vida e a consciência. Quem sabe gerações futuras inventem o “gospel-manifesto”? Tudo é possível.

Quando se assume a chance de fazer algo pelo seu próprio mundo, precisa de descanso. É muito trabalho para quem aceita fazê-lo. Assim como fazíamos no passado, hoje somos infernizados por um ou outro fator natural. A diferença é que hoje é possível fazer diferente. Não é mais necessário pressionar a tecla do interfone. Todos estão condicionados a restringir a si mesmos e abaixam após alguns minutos o volume. Mas o hábito permanece, sabe como é. Ainda dá vontade de tocar o interfone e solicitar as providências cabíveis para um excelente domingo.

Na primeira vez passa batido, mas da próxima vez tocarei o interfone.

E pedirei que repitam algumas músicas.