sexta-feira, 12 de março de 2010

Sangue de Caim

(Autor Desconhecido)

A maioria de nós concordava que Wallace era estranho, ou um pouco mais estranho do que as pessoas geralmente são. Havia longos períodos de tempo que ele passava como que paralisado por algum feitiço, contemplando o nada. Talvez meditando, talvez não, os maus pensamentos que lhe infligiam o coração; quem sabe até premeditando crimes. Nunca saberemos. Os seres humanos têm o condão de surpreender até a si próprios em seus sentimentos. Uma vez ouvi em algum lugar que a mente humana era semelhante a uma bacia. Uma delicada bacia de cristal cheia até a borda das águas tumultuosas do pensamento. Se enchê-la demais, o conteúdo se esparrama e você enlouquece. Acredito que tenha sido assim com Wallace. Ele namorara uma menina por cinco anos, os dois planejavam noivar, quando ela rompeu tudo para se casar com outro. Não quero justificar os atos dele. Longe de mim. Isso é besteira estado unidense. Mas quero que entendam que foi a última gota necessária para que atingisse o limiar, libertando seja lá o que tivesse na cabeça todos esses anos. Uma motivação. Mesmo os calhordas precisam de uma. De fato, principalmente eles.

2
O dia mais frio do ano, anunciava o rádio quando me levantei pela manhã para tomar banho, escovar os dentes e me preparar para ir para o quartel. Novamente eu estava de serviço, e como sempre, aborrecido por isso. "Serviço é uma merda", o tenente sempre repetia no briefing. "Mas nossa obrigação de militares é tirá-lo, e tirá-lo bem. Também passei pelo que estão passando. Hoje são vocês, amanhã serão os novos recrutas. A vida segue." Porém o amanhã nunca parecia tão distante quanto no dia de tirar o serviço. O detestável serviço. Serviço, se não sabem, é ficar retido no quartel 24 horas (ou 30 ou 48, reze para que não falte ninguém) guarnecendo o lugar. Deus sabe o suplício que é ter de fazer isto. Comesse mal, dormisse mal, cagasse mal; no frio ou no calor escaldante; na chuva ou voltado para o sol; com sua vida em risco e a responsabilidade de um armamento para cuidar. "O militar é superior a tudo", bradava o tenente ao final de seus sermões. Se for mesmo verdade, bela porcaria de militar eu fui. Pois mais de uma vez estive à beira de um colapso nervoso na escala apertada de um por um - um dia no quartel, outro em casa... um dia no quartel, outro em casa... um dia no quartel, outro em casa... durante seis terríveis meses.
Agora fazia muito tempo que entrara na escala, por isso já me conformara - melhor dizendo, ligara o automático e me tornara insensível ao drama desta realidade. Eu tinha de tirar o serviço, pronto e acabou. Inútil reclamar. Um dia de guarita ou vinte de prisão! O medo, sem dúvida, é a melhor política. Foi com esse espírito que saí de casa. Faltava pouquíssimo tempo para terminar o período militar inicial e eu podia vislumbrar claramente a luz no fim do túnel. Se tivesse sabido o que estava para acontecer...
Quando cheguei na Base Aérea dos Afonsos, o dia ainda mal clareara e uma densa neblina encobria os prédios brancos da Força Aérea. O Batalhão de Infantaria da Aeronáutica, a única edificação em todo o quartel pintada de verde, se destacava como uma verruga particularmente nojenta. Embora a feiosa aparência externa não refletisse em sua totalidade o caos interior do Batalhão - os banheiros decrépitos, a iluminação precária e os equipamentos em fase de decomposição. No portão, duas sentinelas engajadas numa discussão ferrenha sobre futebol me cumprimentaram com um aceno enquanto eu prossegui sem maiores problemas para o interior da unidade. Isto demonstrava bem a molambice, o desleixo que pairavam ali. Fosse eu um elemento estranho e tivesse más intenções, não me teria sido difícil rendê-los. Por sorte eu era apenas um outro soldado. Mas me causava calafrios pensar no dia que a pessoa a cruzar aquela entrada não seria um soldado ou um militar de todo, e sim um meliante disposto a matar. Até lá, se tudo corresse bem, eu estaria bem longe dali.
Fui ao alojamento trocar o paisano pela farda e encontrei Wallace acabando de se vestir. Nós estaríamos juntos na Base e eu fiz um breve comentário a respeito da porcaria do dormitório. Wallace retrucou que tanto fazia desde que o deixássemos dormir ao invés de ficar matraqueando em voz alta. Perguntei de provocação se ele se esquecera de fazer sexo antes de sair de casa. Wallace não respondeu, retornando ao seu silêncio habitual. Não lembro de termos nos falado outra vez até depois do anoitecer. Não que costumássemos conversar com freqüência. Na maior parte do tempo, eu lhe era completamente indiferente, nem percebendo a sua existência tola. Wallace era tão fechado que nos forçava a ignorá-lo.
Esbarrei com Jefferson no rancho, na fila para o desjejum. Ele discutia com Vitor o último episódio de algum desenho japonês. Os dois eram alucinados em anime e dispensavam boa parte do tempo livre que dispunham ao vício. Eles também estariam de serviço na Base.
"Vai haver aquele famoso sub-zero da Base de madrugada. Trouxeram o abrigo?", perguntei.
Abrigo é um tipo de casaco impermeável, bastante útil.
"E dá pra sobreviver sem ele nesse frio?", disse Vitor.
"Trouxe até meu par de luvas e minha toca. No serviço passado fiquei com os dedos e as orelhas congeladas na guarita. Nunca senti tanto frio na vida", Jefferson esfregou as mãos umas nas outras para enfatizar as palavras.
"Se o tempo não voltar a esquentar, vou acabar me tornando um pingüim. Só que um pingüim camuflado, diferentemente desses pingüins almofadinhas de geladeira."
"Espero que a rendição seja de carro e que o Oficial de Dia não seja um puto.. ou uma puta"
"Ultimamente a nossa equipe tem se fodido em todos os serviços"
"Ninguém foi buscar o senhor em casa, Guerreiro", retruquei rindo. "Veio servi de oferecido que você é."
"Ai, ai, mamãe, o que é que eu tô fazendo aqui?", cantarolaram meus companheiros, relembrando os velhos tempos de recrutamento.
"Quando a nova turma irá se formar? Os malditos recrutas têm de ir logo a pronto para assumir de uma vez os postos. Porra, eu não quero mais, não", disse Jefferson e nós todos demos boas gargalhadas.

3
Você já ouviu falar na espingarda de caça gaujo 12? Não? Sabe o que ela é capaz de fazer com uma pessoa? Também não? Pois bem, eu tive a oportunidade de ver de pertinho. Não há como não se impressionar. O estouro, o magnífico estouro! Se for atingido a uma curta distância, digamos uns 10 metros, não é possível escapar com vida. A espingarda... ela rebenta contigo. Se sobreviver ao impacto, você morre de infecção generalizada, sua merda se mistura com seus órgãos vitais, uma lambança.
O único problema com a espingarda é que por ser uma arma de dispersão ela não é nem um pouco confiável para atingir alvos distantes. Se puder abrir fuga e distanciar-se antes que o atirador toque o gatilho, estará a salvo.

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Briefing de serviço são as instruções que o militar recebe de seu superior no início da missão. O Oficial de Dia, o tenente que ficará responsável pela segurança do quartel pelas próximas 24 horas, reúne sua equipe (soldados, cabos e sargentos) e passa para ela as ordens do coronel-comandante. Na maior parte das vezes, nada muda de um serviço para o outro, tornando o briefing chato e repetitivo. Infelizmente, pela lei militar, o tenente é obrigado a recitar a ladainha da Norma Padrão dos Postos (NPA) a cada novo serviço, mesmo trabalhando com subordinados experientes. Por exemplo, caso não seja informado que está proibido usar qualquer espécie de aparelho eletrônico no posto de serviço no briefing de dia e um soldado for encontrado escutando MP3 Player na guarita e alegar que não sabia que não podia fazê-lo, embora todos saibam pelos briefings de serviços anteriores que não é permitido, o Oficial de Dia será responsabilizado juntamente com este militar. Daí o porquê de ficarmos meia-hora em forma escutando aquilo que já estamos cansados de saber.
"Chamada... Ezequiel"
"Ê-zequiel"
"Jefferson"
"Jeffersú"
"Diego"
"Dieegu"
"Cossatis"
"Cossati..."
"Vitor"
"Vitoooor"
"Canabarro"
"Canabarro, senhor"
"Cândido"
"Cân-di-do"
"Sansão"
"SD. Sansão"
"Virgilio"
"Virgilio!"
"Fonseca"
"Aqui, Fonseca"
"Mon... Mondeini?..."
"É Mondaini, senhor"
"Floriano"
"Flo-ri-an-noooo"
"Wallace"
"Wallace, senhor", disse Wallace com rouquidão. A voz lhe parecia ter sido arrebatada no espaço entre as cordas vocais e a boca, chegando como um murmúrio indefinido aos nossos ouvidos.
"Fale alto, militar!"
"Malucão, não é possível", implicou Cossatis. "O senhor parece uma normalista falando"
Os olhos de Wallace percorreram os rostos ao seu redor, nervosos. Sua face estava muito corada agora. As mãos trêmulas apertavam a espingarda contra o corpo. Tornou vacilante a responder: "Wallace, senhor", e foi saudado por risos histéricos da rapaziada.
O tenente interrompeu a exclamação, sério. "Posso começar meu briefing?"
"Sim, senhor", respondemos. Fez-se silêncio. Wallace encarava o chão de concreto sob seus pés como se de repente ele fosse particularmente atraente. Eu não podia ver seus olhos naquele momento, e Deus seja louvado por isso. Pois com certeza o que encontraria neles não seriam lágrimas, mas sangue, injetando cada pequeno vaso do globo ocular, dilatando as pupilas e espremendo as íris, sangue quente de ódio frio de assassino; Sangue de Caim é como meu falecido avô o descrevia.
"Dúvidas quanto à utilização do armamento?"
"Não, senhor"
"O armamento está municiado, alimentado e descarregado? O cão da arma está à frente?"
"Sim, senhor"
"Dúvidas quanto aos postos de serviço?"
"Não, senhor"
"Alguém com algum problema que o impeça de tirar o serviço hoje?"
"Não, senhor"
"Todos estão portando sua identidade militar?"
"Sim, senhor"
"Os sargentos ou cabos querem acrescentar alguma coisa?"
"Sim, senhor"
"Diga, sargento Kobayashi"
"É só para lembrar que eu não quero a rendição atrasando. Deu a hora de ir render o companheiro, tome um choque na bunda e levante sem reclamação. O serviço é 24 horas, não adianta fazer corpo mole. Também lembrar os senhores que alojamento é para dormir, não é para ficar batendo papo ou ouvindo radinho. Não quero baderna no dormitório. Vou estar bem ali do lado; se houver alteração lá dentro, o militar será lançado no livro. Não adianta vir de conversinha depois, dizendo que precisa engajar, que tem conta para pagar e família a criar. Pense nisso antes de fazer besteira para não se arrepender. Quem estiver insatisfeito, peça baixa do serviço militar, mas por favor não encha o nosso saco. Ah!, acho que não preciso nem dizer, né? Está absolutamente proibido brincadeira com o armamento. Ninguém deve tocar na arma, exceto em uma situação real. Entendido?"
"Mais alguma coisa?"
"Não, senhor"
"Sargento, por gentileza, proceda com o fora de forma"
"Sim, senhor", o sargento Kobayashi se posicionou diante da tropa, em posição de sentido. "Atenção grupamento... Sentido!... Com licença, tenente... Sargento Kobayashi se apresenta e solicita autorização para proceder com o fora de forma..."
"Está autorizado, Kobayashi"
"Equipe... Fora de forma... Marche!"

5
"RENDIÇÃO!"
Numa enxurrada, a Equipe de Serviço do dia anterior subiu correndo no ônibus enquanto nós, a atual Equipe de Serviço, com um serviço inteiro pela frente, íamos arrastando os pés, cabisbaixos para o alojamento. Os únicos apressadinhos eram aqueles que teimavam em todo serviço ficar nas poucas camas debaixo do ventilador e aqueles cujas costas eram provavelmente feitas de algodão e precisavam pegar dois, três colchões, quando na verdade o correto era que pegasse apenas um. Acabou que Sansão e eu ficamos sem colchão. Começamos a reclamar.
"Olha, não queremos nem saber, se não aparecer um colchão para cada um de nós dormir, vamos logo chamar o Oficial de Dia para resolver o problema"
"Pestana tá com dois colchões", acusou alguém.
"Vou dá o papo", retrucou Pestana. "Pega o colchão de um mais novinho aí no bagulho. Ou então pega lá do alojamento dos antigos. Vocês ficam sem colchão e já vem pra cima do Pestaninha aqui... o Júnior, esse novo, tá com dois colchões, por que não pegam dele?... dele e do Mondeini..."
"É Mondaini... E pegar meu colchão porra nenhuma! Pega dos antigos! Do Júnior, esse pela-saco, pode pegar também"
"Júnior Pela-Saco", gritou Cossatis, empoleirado no alto de um beliche.
"Pô, tudo é culpa do Júnior nesse alojamento?", reclamou Júnior, indignado.
"Que está acontecendo? Qual é a zona que vocês estão aprontando?", o sargento Kobayashi acabava de surgir no umbral do dormitório.
Sansão e eu explicamos a situação.
"Só não vou me aborrecer com esses moleques - qual esse Júnior vagabundo - por que Jesus pede que nós tenhamos paciência com as pessoas. Até com as mais idiotas", disse Sansão.
"Não tem nem discussão", avisou o sargento. Foi até a cama de Júnior e Pestana, arrancou-lhes o colchão sobressalente e nos entregou. "Espero não ter mais problemas com a equipe."
"Quoé menor, qual foi? Vai dar alteração no serviço. Tô falando sério", disse Pestana, contrariado.
Daí a pouco, depois que o sargento Kobayashi saiu, ele se levantou da cama, foi ao cômodo separado onde era o alojamento dos soldados antigos e surrupiou deles um colchão para si.
"Ah!, Pestaninha tá tranqüilão agora! Dois colchões de patrão!", tornou a se deitar, sorrindo.

6
São três militares por posto de serviço. O serviço é dividido entre eles em quartos de hora. Os quartos de hora têm duração prevista de duas horas, aproximadamente. Um militar fica no posto e os outros dois descansam. O quer dizer que se descansa quatro horas a cada duas horas ativo no serviço. Eu estava no segundo quarto de hora. O terceiro quarto me renderia somente após ter almoçado e eu só almoçaria depois que fosse rendido. Meu estômago já estava roncando.
Meu posto de serviço era o 1M (Primeiro Móvel), um dos oito postos de serviço da Base. Resumidamente, minha missão era rondar ao longo da transversal que englobava o Prédio do Comando, os Ranchos, o Grupo de Transporte de Tropas, o Grupo de Aviação, o PARA-SAR, a garagem e o estacionamento, observando se algo de errado aconteceria por ali. Para tal, eu estava munido com a sempre insignificante pistola engasgabel 9mm e 14 munições divididas em dois carregadores, além de um colete balístico pela hora da morte fedendo mortalmente a suor. Aliás, este era o padrão dos equipamentos fornecidos pela FAB - ultrapassados e sujos!
No meu posto ainda havia uma guaritinha - a bem da verdade estava mais para uma toca que para uma guarita - da qual podia olhar a rua e a movimentação fora do quartel. Era lá que eu ia para matar o tempo infindável do quarto de hora, principalmente durante o expediente quando era grande o trânsito de militares.
E estava eu tão concentrado naquela guaritinha, os olhos fixos na vida vibrante do mundo exterior, que fui tomado de susto ao olhar para o relógio e descobrir que passava de uma hora da tarde. O mostrador verde e arranhado do meu relógio marcava exatamente 1h07 pm. Para variar, a rendição estava bastante atrasada. Catei do chão o colete (sempre o tirava do corpo na guarita) e tornei a vesti-lo de qualquer maneira sobre a farda.
Nesse ínterim, a rendição saía do rancho para me apanhar.

7
Brhummm!, ouvi. E então... Pof! Pof! Taf! Erhhhh! Paf!
A ridícula caminhonete da rendição (uma Toyota bandeirantes azul, bastante esculachada, com a marcha fodida e apenas um dos faróis funcionando) chegou ao 1M trepidando e parou com um ronco seco. Canabarro desceu da carroceria do veículo e veio pegar comigo o colete balístico. Andava em seu jeitão tipicamente largado, os braços moles balançando ao lado do corpo, a cobertura torta na cabeça. Sorriu-me os dentes salientes. Desejei-lhe boa sorte e embarquei decidido no caminhão.
O caminhão partiu num arranque assustador e adentrou a área da baiúca, onde tradicionalmente os pára-quedistas se reuniam para saltar. Ali ficava o 2M, o responsável pela segurança de toda a Área Operacional do Campo dos Afonsos. A sentinela da hora era o Vitor, que foi rendido por um Cossatis desanimado. Passado o 2M, a rendição seguiu em direção aos dois postos mais distantes e isolados da Base, o 5F e o 7F: duas guaritas perdidas na extensão do longo muro que se estendia de Sulacap a Marechal Deodoro; completamente afastadas do restante do quartel; voltadas para a pista de pouso e para o matagal da Zona de Lançamento. De lá a Base era um amontoado minúsculo de prédios erguido no horizonte.
Na carroceria da Toyota, Vitor e Pestana discutiam a respeito de um caso particularmente curioso que ocorrera no Hospital de Aeronáutica dos Afonsos.
"Comeram uma piranha no Hospital, o menor antigo deu o papo", dizia Pestana. "Levaram a piranha para o alojamento dos soldados e sentaram a piroca bonito!"
"Deve ser mentira. Soldado antigo é cheio de historinha", insistia Vitor.
"Tô falando, rapa. Os moleques filmaram o bagulho. Botaram a mina de lado, levantaram a perna dela para o ar, vieram por trás e... Vrauuu!"
Pestana desatou a rir. "Vagabundo alopra no Hospital..."
"E quem era a garota? O que aconteceu com ela?"
"Era estagiária da Radiologia. Os menor desenrolaram com o sargento e o tenente e se safaram. A piranha foi demitida, lógico. Dizem que até os faxineiros e o pessoal da obra estavam socando nela"
"Vagabundo é foda!", bradou Vitor. "Vagabundo é mesmo foda. Para os moleques que também fizeram a merda não deu nada?"
"Claro, irmão. Pô, os parceiros são militares, estavam de serviço, vem essa piranha com a xereca coçando, tu queria que eles fizessem o quê? Se eu tivesse de serviço no dia, teria bagunçado ela. Teria mostrado a cabeça de maça para aquela puta. Ela ia como... diz tu... sentar!"
"Você não é noivo, Pestana?", falei.
"Qual foi, Virgilio? Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa bem diferente. Parece que não sabe..."
Eu sabia. Perguntava por força do hábito.
"Espero que sua a noiva também entenda que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa diferente"
"Tá de mancada, Virgilio. Na boa, minha costelinha tá em casa, sossegadinha, limpinha, só esperando o Pestaninha... Ih, até rimou, rapa"
"Sorte sua ter tanta certeza"
Taf! Taf! Finalmente o caminhão chegara ao 5F e ao 7F, e a rendição dos quartos de hora estava concluída.
"Toca para o rancho, cabo!"
Eu estava quase dilacerado de fome.

8
A parte da tarde do serviço transcorreu tranqüila, apesar de alguns pequenos incidentes, que relatarei abaixo:
Após o cabo ter nos deixado no rancho, ainda levamos bem uma meia-hora para conseguirmos comer. Isso porque o sargento Fernandez, responsável pelo andamento e manutenção do rancho, estava num daqueles dias em que não tinha nada melhor para fazer do que sacanear um bando de soldados famintos. Tivemos de esperar em forma, olhando para a sua cara de bunda ("procurem as chaves do refeitório no meu cu", zombava o sargento), até o Oficial de Dia chegar e pôr um jeito na situação. Só assim pudemos entrar para almoçar o frango frito com farofa, a especialidade da Força Aérea.
Ezequiel, um soldado magro de nariz curvado e orelhas de abano, primeiro quarto do 1M, foi encontrado em seu quarto de hora arrancando cocos com o auxílio da sentinela do 2M, Jefferson. Eu estava indo rendê-lo quando o cabo o pegou em flagrante. Não houve punição. O cabo confiscou os cocos de Ezequiel e o assunto foi esquecido.
Júnior, primeiro quarto do 5F, teve uma tremenda de uma dor de barriga no posto de serviço. Fulminado pela caganeira, desceu às pressas da guarita para defecar no matagal. Sem ter com o que se limpar, teve de ficar cagado até ser rendido. Fazia um dia claro, a despeito do frio. O sol batia diretamente no 5F. O que fez o posto se impregnar do cheiro da merda pelo restante do mês.
Sansão, um moço evangélico, sentinela do 4F, foi obrigado pelos demais soldados a assistir um filme pornô (Xerecas em Fúria 2). Era a primeira vez que ele assistia algo dessa natureza. Segundo o próprio Sansão relatou depois, "aquele DVD despertou o Adão que havia nele."
Uma das amigas de Pestana ligou para informá-lo que vira sua noiva de passeio pelo shopping com um sujeito musculoso, que atendia no Orkut pela alcunha de Paulão PQD. Fazendo-se de desentendido, Pestana alegou se tratar do primo da garota.
Cândido atazanou no alojamento até a hora do jantar. Sua rendição passara com dez minutos de atraso - o que ele julgava inadmissível.
Floriano assistiu ao filme do Pelé no MP4. Ahhh, muleque...
Enquanto isso, Wallace nos estudava em silêncio. Sem que nenhum de nós percebesse o brilho maligno de seus olhos.

9
Em grande parte, não vivenciei os crimes da noite de 24 de junho, nem posso afirmar ao certo como se passaram. Muito daquilo que leram adiante é suposição minha. Como eu imagino o desenrolar das mortes de meus companheiros e das ações desvairadas de Wallace. Entretanto, exageros à parte, os resultados foram os mesmos tanto para a ficção quanto para a realidade. Gostaria ser possível escrever um final diferente. Para a minha infelicidade, não possuo o poder necessário. Porque, afinal, esta é uma história real. A realidade pode ser enfeitada, mas não desmentida. Sendo somente o humilde contista, minha obrigação é narrar os fatos da maneira mais concisa que eu conseguir. O leitor é livre para julgá-los à vontade.

10
Tivemos o pernoite (em termos simples, a repetição enfadonha do briefing de serviço da manhã) e fomos liberados para dormir. Antes o sargento Kobayashi distribuiu nossos lanches da noite: um pão com queijo amassado, uma bananada melada, um copo de guaraná natural artificial e uma simpática maça-anã.
Faltava ainda duas horas para eu ir render. Seria minha terceira vez no posto, minha penúltima vez nesse serviço. Está quase terminando, pensei ao fechar os olhos. Quase... mas só termina quando acaba, dizia o velho conhecido ditado.
Wallace estava de sentinela no 0F - um posto no alto da entrada principal da Base - e portanto um dos três militares tirando serviço de espingarda. Ele era do terceiro quarto de hora e foi rendido às nove horas da noite em ponto. Saiu do posto diretamente para o dormitório. O procedimento padrão, que não levantou suspeitas do sargento na sala ao lado. O que Wallace tinha em mente, contudo, era a porta dos fundos do alojamento. Não sentia um mínimo de sono. Apenas uma excitação diabólica.
Ele visitou primeiro o 2F. Fonseca estava lá. Wallace se aproximou com a espingarda em bandoleira e pediu a Fonseca para descer um instante. Tinha de trocar uma idéia sobre um assunto inadiável, qualquer coisa assim. Prontamente, Fonseca desceu da segurança da guarita para ouvir o outro, mesmo sem jamais ter existido assunto particular entre eles. E foi nessa hora que Wallace dominou-o e estrangulou-o com um fio de náilon, que lhe cortou o pescoço em três níveis diferentes. Fonseca caiu morto sem dizer palavra.
O posto seguinte era o 4F. O 4F ficava a uma distância considerável da guarda, porém Wallace ainda se sentia receoso de utilizar a espingarda. O barulho da arma era muito poderoso. Mondaini, entrementes, estava menos apático que Fonseca no posto. Talvez não fosse tão fácil agarrá-lo. Wallace se deteve um instante. Depois a lembrança do corpo ensangüentado de Fonseca, que não demoraria a ser descoberto, colocou-o a caminho. Era tarde demais para voltar atrás. Chamou Mondaini, novamente alegando uma desculpa esfarrapada. Mondaini não tinha motivos para confiar em Wallace, mas também não tinha motivo para temê-lo. Era um soldado, um colega, um irmão de armas, etc. Por que não desceria da guarita para lhe falar? Foi o que Mondaini fez, e tudo o que pode pensar antes do disparo da espingarda abrir um O em sua barriga foi que Wallace não deveria brincar com um armamento tão perigoso. Mondaini ficou estirado na poça de seu próprio sangue, perdendo lentamente os sentidos, agonizando até a morte. O disparo da espingarda foi abafado pelas trovoadas e pela chuva que começou a cair bem nesse momento.
Ensandecido, Wallace saiu em disparada para um 1M. Ria sem parar correndo em meio à chuva para sua próxima vítima, Ezequiel; que tivera a infelicidade de pegar o quarto de hora errado naquele serviço. O pobre Ezequiel ouvindo seu radinho debaixo de uma marquise, sem esperar pelo pior. O pobre Ezequiel cujo último sentimento foi um tremendo susto por ver Wallace surgir daquela chuvarada com uma espingarda de caça apontada para ele. O disparo arrancou a cabeça de Ezequiel do corpo. Para ser mais preciso, o disparo lhe desintegrou os miolos e espalhou os estilhaços do crânio aos quatro ventos. Wallace chutou o corpo degolado de Ezequiel e foi em frente com suas diabruras.
Jefferson topou com Wallace indo do 1M para o 2M e foi morto sem que pudesse perguntar o que fora aquele disparo que ouvira. Digamos que ele descobriu tudo por experiência própria.
Era Júnior no 5F. Seus intestinos continuavam mal e ele só conseguia se concentrar na dor. Floriano teve de gritá-lo do 7F para alertá-lo da figura que se aproximava rapidamente deles. A chuva começava a apertar e Júnior pensava se não deveria ter ido para o 7F. E quem era aquele louco que corria para eles? Júnior deu o golpe na pistola. Wallace chegou até ele e gritou para que descesse. Júnior se recusou. Wallace hesitou pensando em Floriano que os assistia e depois pensou que não importava muito. Não pretendia mesmo sair vivo disso. Apontou para Júnior dentro da guarita e disparou. Júnior se jogou no chão, mas não rápido o suficiente para evitar ser atingido. "Eu não quero morrer", berrou Júnior. "Socorro!, eu não quero morrer." O disparo não havia sido fatal. Wallace subiu na guarita e encontrou Júnior ferido, rolando no chão. Ele gritava como uma mulherzinha. "Por favor." Wallace ergueu a espingarda e terminou o serviço.
Um tiro de pistola soou na direção do 5F. Era Floriano. Em pânico, ele atirava contra a figura aterradora que acabara com Júnior. Ainda não percebera se tratar de Wallace, nem fazia diferença. Urinava nas calças de medo. Tornou a disparar inutilmente contra o 5F; sem se atentar para o fato que a munição da pistola não alcançava tamanha distância.
Quanto a Wallace, ele avaliava suas chances. Só lhe restavam duas munições na espingarda. Havia a pistola do falecido Júnior, é claro; mas Wallace não a queria. Não precisava de muito mais para terminar aquilo pelo que vivera toda a sua vida. Tudo o que precisava era que Floriano morresse antes que ele próprio se fosse. Wallace nunca chegou exatamente a cogitar por que ele precisava disso. O que sabia é que precisava. Com todo o ódio de seu coração, ele precisava. Isso bastava para preencher sua infelicidade e aplacar sua tristeza. Não era um rapaz muito exigente. Partiu rumo ao 7F, rumo ao final da sua jornada, sem correria, com um desapego que lhe era alheio.
Floriano, em seu posto, se recuperara o suficiente para pressionar o alarme de emergência. Se o alarme ainda funcionasse, talvez tivesse uma chance. Continuava mirando em Wallace. Ele estava próximo agora. Incrivelmente Floriano ainda errava o alvo.
Wallace sorria de satisfação.

11
Quando o alarme tocou na guarda, houve o maior pandemônio que a Aeronáutica já vira desde a crise dos controladores de vôo. Os soldados saíram do alojamento se esbarrando, seminus, apontando seus armamentos para a cara uns dos outros, numa desordem infernal. O sargento e o tenente pulavam de lá para cá sem saber o que fazer. Estavam atacando o quartel! Era real! O que fariam? Chamariam a polícia? Bem, não poderiam. Afinal, eram militares - preparados e malvados! Tinham de fazer alguma coisa por eles mesmos.
Embarcaram todos no caminhão da rendição do jeito que estavam - alguns sem camisa, alguns sem boot, alguns totalmente pelados - e se lançaram na direção do 7F na maior velocidade que podiam. Era o soldado Lins na direção. E como se louco fosse, ele dirigia para o destino, derrubando latas de lixo pelo caminho, atropelando cães, arrancando faíscas da lataria da caminhonete nas paredes de concreto.
Wallace estava junto ao 7F, caído sobre os joelhos, alvejado por Floriano. O sangue jorrava abundante de seu peito. Seus olhos castanhos iam perdendo a cor, mudando para cinza. Ele estava morrendo, mas ainda segurava a espingarda firmemente, apontando-a para o céu como uma ameaça a Deus.
No alto da guarita, as lágrimas rolavam dos olhos de Floriano. "Não era a minha intenção", ele dizia. "Eu não tive escolha. Não tive escolha."
Estrebuchando, Wallace desabou de uma vez no chão. Parecia um peixe depois de ser arrebatado das águas de um rio. Um filete de sangue escorria de seus lábios para o asfalto.
Eu estava ali com os outros soldados no momento exato da morte. Vi os músculos de Wallace pararem, e então enrijecerem. Vi a vida o abandonar. Vi o sofrimento inconformado de Floriano - por que tinha de estar ali no 7F? Vi a perplexidade das testemunhas. Vi e vivi, e por isso escrevo.
Para que se lembrem, meus amigos. Para que se lembrem até o último dia de suas vidas.

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