quarta-feira, 9 de junho de 2010

Lin Yutang

II – O celibato, capricho da civilização
A adoção de um ponto de vista biológico tão simples e natural implica dois conflitos: primeiro, o conflito entre o individualismo e a família, e depois, um conflito mais profundo entre a estéril filosofia do intelecto e a mais ardente filosofia do instinto. Pois o individualismo e o culto do intelecto costumam cegar o homem para as belezas da vida doméstica e, entre ambos, creio que o primeiro não é tão maléfico quanto o segundo. Um homem que creia no individualismo e o leve às suas conseqüências lógicas pode ser ainda inteligente; mas o homem que crê na cabeça fria contra o coração vivaz é um tolo. Para a família como unidade social pode haver substitutos, mas não para a perda do instinto do acasalamento e do instinto paterno e materno.
Temos de partir da premissa de que o homem não pode viver só neste mundo e ser feliz, mas deve associar-se a um grupo. O eu do homem não está limitado por suas proporções corporais, pois existe um eu muito maior que se estende até onde alcançam as suas atividades mentais e sociais. Em qualquer época e país, e sob qualquer forma de governo, a verdadeira vida que significa alguma coisa para o homem não é jamais extensiva com seu país ou sua época, mas consiste nesse mais íntimo círculo de suas relações e atividades, a que chamamos o eu maior. Nesta unidade social, ele vive e se move e tem sua individualidade. Tal unidade social pode ser uma paróquia, uma escola, uma prisão, ou uma casa de negócios, ou uma organização filantrópica. Podem ocupar estas a posição do lar como unidade social, e substituí-lo por completo às vezes. A própria religião, ou acaso um grande movimento político pode consumir o ser inteiro de um homem. Mas, de todos esses grupos, o lar continua sendo a única unidade natural e biologicamente real, satisfatória e significativa de nossa existência. É natural, porque cada homem se encontra já em seu lar quando nasce e também porque continua em um lar durante a vida, e é biologicamente real porque a relação do sangue empresta realidade visível à noção desse seu eu maior. Quem não consiga bom êxito nesta vida natural do grupo não pode esperar êxito na vida em outros grupos. Confúcio disse: “os jovens deveriam aprender a ser filiais no lar e respeitosos na sociedade; deveriam ser conscientes e honestos, e amar a todas as pessoas e juntar-se aos homens bondosos. Se depois de cumprir esses preceitos, resta-lhes energia, que leiam livros”. Além da importância desta vida do grupo, o homem se expressa e se realiza plenamente e chega ao mais alto desenvolvimento de sua personalidade quando encontra um adequado complemento em uma pessoa de outro sexo.
Bem o sabe a mulher, que tem um sentido biológico mais profundo que o do homem. Subconscientemente, todas as meninas chinesas sonham com a vermelha saia de bodas e o palanquim nupcial, e todas as meninas ocidentais sonham com o véu de noiva e os sinos do casamento. A natureza dotou as mulheres de um instinto maternal bastante poderoso para que não possam ser facilmente afastadas do caminho por uma civilização artificial. Não duvido de que sua natureza conceba a mulher, sobretudo como mãe, mais do que como esposa, dotando-a de características morais e mentais atinentes ao seu papel como mãe, que encontram sua verdadeira explicação e unidade no instinto maternal: idealismo, juízo, gosto por detalhes, amor aos pequenos e desventurados, desejo de cuidar de alguém, forte amor e ódio instintivos, profunda vida emotiva, e um ponto de vista geralmente pessoal sobre todas as coisas. A filosofia, portanto, muito errou abandonando o próprio conceito da natureza e procurando tornar felizes as mulheres sem levar em conta esse instinto maternal que é o traço predominante e a explicação central de todo o seu ser. Assim, em todas as mulheres com pouca ou nenhuma educação, o instinto maternal nunca está suprimido, aparece na meninice, e torna-se cada vez mais forte na adolescência até a maturidade, ao passo que no homem o instinto paternal raramente se torna consciente, até passados os trinta e cinco anos, ou, em todo caso, até que tenha um filho ou uma filha de cinco anos. Não creio que um homem de vinte e cinco anos pense jamais em ser pai. Enamora-se de uma jovem e incidentalmente produz um bebê e esquece o assunto, ao passo que os pensamentos de sua mulher não se ocupam de outra coisa, até que um dia, passados já os trinta e cinco, descobre o pai que tem um filho ou uma filha a quem pode levar às compras e mostrar aos amigos, e só então começa a sentir-se paternal. Poucos são os homens de vinte a vinte e cinco que não se divirtam com a idéia de chegarem a pais e fora disso não pensam no assunto, ao passo que ter um filho, ou mesmo esperá-lo, é provavelmente a coisa mais séria que pode ocorrer na vida de uma mulher, e transforma todo o seu ser a ponto de efetuar uma completa mutação em seu caráter e costumes. O mundo converte-se-lhe num mundo diferente, quando uma mulher está para ser mãe. Desde esse momento, não lhe resta dúvida alguma quanto à sua missão na vida ou à finalidade de sua existência. Precisa-se dela, e ela é necessária. Ela desempenha a sua função. Vi a mais amimada e luxenta filha única de uma rica família chinesa convertida em uma heróica mulher e vi-a perder o sono durante meses enquanto seu filho esteve doente. No plano da natureza, não é necessário um instinto paternal assim, nem assim acontece, porque como o pato ou o ganso, tem o homem pouco interesse por sua cria, além de haver contribuído com a sua parte. As mulheres, por conseguinte, sofrem muito mais quando essa força motriz central de seu ser não se expressa e não funciona. Não me falem da excelência da civilização norte-americana para o sexo feminino quando permite que tantas mulheres boas fiquem solteiras sem culpa nenhuma.
Não duvido que o desajuste dos matrimônios norte-americanos se deva muito principalmente a essa discrepância entre o instinto maternal das mulheres e o instinto paternal dos homens. A imaturidade emotiva dos jovens norte-americanos não pode ter outra explicação a não ser esse fato biológico; os homens que se criam sob um sistema social de excessivos mimos à juventude não possuem o senso da responsabilidade que têm as moças, devido a seu desenvolvido instinto maternal. Seria ruinoso que a natureza não dotasse as mulheres de suficiente sobriedade quando estão fisiologicamente aptas para ser mães. Os filhos de famílias pobres possuem esse sentimento de responsabilidade, proporcionado pelas circunstâncias mais penosas, e desse modo só ficam os filhos mimados das famílias ricas – em uma nação que venera e mima a juventude – em ideais condições para se converterem em incompetentes sociais e emotivos.
Afinal, só nos interessa a pergunta: “como viver ma vida mais feliz?”, e não pode ser feliz nenhuma vida a menos que, além das realizações superficiais da vida externa, se efetivem as tendência mais profundas do indivíduo. O celibato, como ideal sob a forma de “carreira pessoal”, traz consigo não só um toque individualista, mas também outro totalmente intelectual, e por esta última razão deve ser condenado. Sempre suspeito que o solteirão ou a solteirona que perseveram em tal estado por deliberação própria são uns meros intelecutalistas, por demais preocupados com suas realizações externas, e certos de que, como seres humanos, podem encontrar a felicidade em um defeituoso sucedâneo da vida doméstica, ou que podem encontrar um interesse intelecutal, artístico ou profissional profundamente satisfatório.
Nego-o. Este espetáculo do individualismo, do celibato e da ausência de filhos, da procura do sucedâneo em “carreiras” e empresas ou em campanhas para impedir a crueldade para com os animais, sempre me surpreendeu como uma coisa tola e cômica. Isto é fisiologicamente sintomático no caso dessas velhas solteironas que procuram processar o diretor de um circo por sua crueldade com os tigres, pois despertaram suas suspeitas as marcas dos relhaços no lombo dos animais. Parecem provir tais protestos de um instinto maternal mal dirigido, aplicado a uma espécie inadequada, como se os verdadeiros tigres jamais se preocupassem com uns poucos relhaços. Essas pessoas tateiam vagamente em busca de alguma coisa, empenhando-se em convencer a si mesmas e aos outros de que ocupam um lugar na vida.
Os louros dos triunfos políticos, literários e artísticos só podem produzir nos seus portadores um pálido, intelectual sorriso, enquanto é imensamente real e impossível de descrever com palavras e alegria de ver crescerem filhos fortes e sadios. Quantos autores e artistas estão satisfeitos com suas realizações ao atingir a velhice, e quantos as consideram tão-somente simples produtos de um passatempo, justificáveis sobretudo como meio de ganhar a vida? Contam que poucos dias antes da sua morte Herbert Spencer fez empilhar sobre a sua cama os dezoito volumes da filosofia sintética e que, ao sentir seu preso frio, perguntou se não seria melhor ter um neto em lugar desta obra. Não teria trocado a sábia Elia a totalidade de seus ensaios por um de seus “filhos de sonho”? Não duvido que tenha sido uma satisfação moral e estética para John D. Rockefeller a idéia de tanto haver contribuído para a felicidade humana em tão vastas regiões. Mas, ao mesmo tempo, não duvido que essa satisfação fizesse menor sentido quanto à vida privada.

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